UMA
CRÔNICA DO LALAU
SÉRGIO PORTO
|
ÉRAMOS MAIS
UNIDOS
AOS DOMINGOS
As
senhoras chegavam primeiro porque vinham diretas da missa para o café da manhã.
Assim era que, mal davam as 10, se tanto, vinham chegando de conversa,
abancando-se na grande mesa do caramanchão. Naquele tempo pecava-se menos, mas
nem por isso elas se descuidavam. Iam em jejum para a missa, confessavam lá os
seus pequeninos pecados, comungavam e depois vinham para o café. Daí chegarem
mais cedo.
Os homens, sempre mais dispostos ao pecado, já não se cuidavam tanto. Ou antes, cuidavam mais do corpo do que da alma. Iam para a praia, para o banho de sol, os mergulhos, o jogo de bola. Só chegavam mesmo — e invariavelmente atrasados na hora do almoço. Vinham ainda úmidos do mar e passavam a correr pelo lado da casa, rumo ao grande banheiro dos fundos, para lavar o sal, refrescarem-se no chuveiro frio, excelente chuveiro, que só começou a negar água do Prefeito Henrique Dodsworth pra cá.
O casarão, aí por volta das 2 horas, estava apinhado. Primos, primas, tios, tias, tias-avós e netos, pais e filhos, todos na expectativa, aguardando aquela que seria mais uma obra-mestra da lustrosa negra Eulália. Os homens beliscavam pinga, as mulheres falando, contando casos, sempre com muito assunto. Quem as ouvisse não diria que estiveram juntas no domingo anterior, nem imaginaria que estariam juntas no domingo seguinte. As moças, geralmente, na varanda da frente, cochichando bobagens. Os rapazes no jardim, se mostrando. E a meninada, mais afoita, rondando a cozinha, a roubar pastéis, se fosse o caso de domingo de pastéis.
De repente aquilo que Vovô chamava de "ouviram do Ipiranga as margens plácidas". Era o grito de Eulália, que passava da copa para o caramanchão, sobraçando uma fumegante tigela, primeiro e único aviso de que o almoço estava servido. E então todos se misturavam para distribuição de lugares, ocasião em que pais repreendiam filhos, primos obsequiavam primas e o barulho crescia com o arrastar de cadeiras, só terminando com o início da farta distribuição de calorias.
Impossível descrever os pratos nascidos da imaginação da gorda e simpática negra Eulália. Hoje faltam-me palavras, mas naquele tempo nunca me faltou apetite. Nem a mim nem a ninguém na mesa, onde todos comiam a conversar em altas vozes, regando o repasto com cerveja e guaraná, distribuídos por ordem de idade. Havia sempre um adulto que preferia guaraná, havia sempre uma criança teimando em tomar cerveja. Um olhar repreensivo do pai e aderia logo ao refresco, esquecido da vontade. Mauricinho não conversava, mas em compensação comia mais do que os outros.
Moças e rapazes muitas vezes dispensavam a sobremesa, na ânsia de não chegarem atrasados na sessão dos cinemas, que eram dois e, tal como no poema de Drummond, deixavam sempre dúvidas na escolha.
A tarde descia mais calma sobre nossas cabeças, naqueles longos domingos de Copacabana. O mormaço da varanda envolvia tudo, entrava pela sala onde alguns ouviam o futebol pelo rádio, um futebol mais disputado, porque amador, irradiado por locutores menos frenéticos. Lá, nos fundos os bem-aventurados dormiam em redes. Era grande a família e poucas as redes, daí o revezamento tácito de todos os domingos, que ninguém ousava infringir.
E quando já era de noitinha, quando o último rapaz deixava sua namorada no portão de casa e vinha chegando de volta, então começavam as despedidas no jardim, com promessas de encontros durante a semana, coisa que poucas vezes acontecia porque era nos domingos que nos reuníamos.
Depois, quando éramos só nós — os de casa — a negra Eulália entrava mais uma vez em cena, com bolinhos, leite, biscoitos e café. Todos fazíamos aquele lanche, antes de ir dormir. Aliás, todos não. Mauricinho sempre arranjava um jeito de jantar o que sobrara do almoço.
Os homens, sempre mais dispostos ao pecado, já não se cuidavam tanto. Ou antes, cuidavam mais do corpo do que da alma. Iam para a praia, para o banho de sol, os mergulhos, o jogo de bola. Só chegavam mesmo — e invariavelmente atrasados na hora do almoço. Vinham ainda úmidos do mar e passavam a correr pelo lado da casa, rumo ao grande banheiro dos fundos, para lavar o sal, refrescarem-se no chuveiro frio, excelente chuveiro, que só começou a negar água do Prefeito Henrique Dodsworth pra cá.
O casarão, aí por volta das 2 horas, estava apinhado. Primos, primas, tios, tias, tias-avós e netos, pais e filhos, todos na expectativa, aguardando aquela que seria mais uma obra-mestra da lustrosa negra Eulália. Os homens beliscavam pinga, as mulheres falando, contando casos, sempre com muito assunto. Quem as ouvisse não diria que estiveram juntas no domingo anterior, nem imaginaria que estariam juntas no domingo seguinte. As moças, geralmente, na varanda da frente, cochichando bobagens. Os rapazes no jardim, se mostrando. E a meninada, mais afoita, rondando a cozinha, a roubar pastéis, se fosse o caso de domingo de pastéis.
De repente aquilo que Vovô chamava de "ouviram do Ipiranga as margens plácidas". Era o grito de Eulália, que passava da copa para o caramanchão, sobraçando uma fumegante tigela, primeiro e único aviso de que o almoço estava servido. E então todos se misturavam para distribuição de lugares, ocasião em que pais repreendiam filhos, primos obsequiavam primas e o barulho crescia com o arrastar de cadeiras, só terminando com o início da farta distribuição de calorias.
Impossível descrever os pratos nascidos da imaginação da gorda e simpática negra Eulália. Hoje faltam-me palavras, mas naquele tempo nunca me faltou apetite. Nem a mim nem a ninguém na mesa, onde todos comiam a conversar em altas vozes, regando o repasto com cerveja e guaraná, distribuídos por ordem de idade. Havia sempre um adulto que preferia guaraná, havia sempre uma criança teimando em tomar cerveja. Um olhar repreensivo do pai e aderia logo ao refresco, esquecido da vontade. Mauricinho não conversava, mas em compensação comia mais do que os outros.
Moças e rapazes muitas vezes dispensavam a sobremesa, na ânsia de não chegarem atrasados na sessão dos cinemas, que eram dois e, tal como no poema de Drummond, deixavam sempre dúvidas na escolha.
A tarde descia mais calma sobre nossas cabeças, naqueles longos domingos de Copacabana. O mormaço da varanda envolvia tudo, entrava pela sala onde alguns ouviam o futebol pelo rádio, um futebol mais disputado, porque amador, irradiado por locutores menos frenéticos. Lá, nos fundos os bem-aventurados dormiam em redes. Era grande a família e poucas as redes, daí o revezamento tácito de todos os domingos, que ninguém ousava infringir.
E quando já era de noitinha, quando o último rapaz deixava sua namorada no portão de casa e vinha chegando de volta, então começavam as despedidas no jardim, com promessas de encontros durante a semana, coisa que poucas vezes acontecia porque era nos domingos que nos reuníamos.
Depois, quando éramos só nós — os de casa — a negra Eulália entrava mais uma vez em cena, com bolinhos, leite, biscoitos e café. Todos fazíamos aquele lanche, antes de ir dormir. Aliás, todos não. Mauricinho sempre arranjava um jeito de jantar o que sobrara do almoço.
Texto
extraído do livro “A Casa Demolida”, Editora do Autor – Rio de Janeiro, 1963,
pág. 23.
UMA
BIOGRAFIA
SÉRGIO PORTO
POR ELE MESMO
"ATIVIDADE PROFISSIONAL: Jornalista,
radialista, televisista (o termo ainda não existe, mas a atividade dizem que
sim), teatrólogo ora em recesso, humorista, publicista e bancário.
OUTRAS ATIVIDADES: Marido, pescador, colecionador
de discos (só samba do bom e jazz tocado por negro, além de clássicos),
ex-atleta, hoje cardíaco. Mania de limpar coisas tais como livros, discos,
objetos de metal e cachimbos.
PRINCIPAIS MOTIVAÇÕES: Mulher.
QUALIDADES PARADOXAIS: Boêmio que adora ficar
em casa, irreverente que revê o que escreve, humorista a sério.
PONTOS VULNERÁVEIS: Completa incapacidade para se
deixar arrebatar por política. Jamais teve opinião formada sobre qualquer
figurão da vida pública, quer nacional, quer estrangeira.
ÓDIOS INCONFESSOS: Puxa-saco, militar metido a
machão, burro metido a sabido e, principalmente, racista.
PANACÉIAS CASEIRAS: Quando dói do umbigo para
baixo: Elixir Paregórico. Do umbigo para cima: aspirina.
SUPERTIÇÕES INVENCÍVEIS: Nenhuma, a não ser em
véspera de decisão de Copa do Mundo. Nessas ocasiões comparativamente
qualquer pai-de-santo é um simples cético.
TENTAÇÕES IRRESISTÍVEIS: Passear na chuva, rir em
horas impróprias, dizer ao ouvido de mulher besta que ela não tão boa quanto
pensa.
MEDOS ABSURDOS: Qualquer inseto taludinho (de
barata pra cima).
ORGULHO SECRETO: Faz ovo estrelado como Pelé
faz gol. Aliás, é um bom cozinheiro no setor mais difícil da culinária: o
trivial.
Assinado, Sérgio Porto, agosto de 1963."
Filho de Américo Pereira da Silva Porto e de D.
Dulce Julieta Rangel Porto, Sérgio Marcos Rangel Porto, um
cidadão acima de qualquer desfeita, nasceu no Rio de Janeiro em pleno verão, no
dia 11 de janeiro de 1923, e ficou famoso anos depois sob o pseudônimo de Stanislaw
Ponte Preta, emprestado à Oswald de Andrade (vide Memórias de
Serafim Ponte Grande). Foi casado com Dirce Pimentel de Araújo, com
quem teve três filhas: Gisela, Ângela e Solange.
Dizem seus estudiosos que no citado livro teria
encontrado seu grande filão:a irreverência. Começou uma obra carioquíssima, até
hoje insuperável, transpondo para jornais, livros e revistas o saboroso
coloquial do Rio de Janeiro. Afirmam, também, que as melhores crônicas são
aquelas onde a disposição de desfazer o sentido de uma palavra ou de uma situação
não se manifesta apenas no final do enredo, mas parece atingir a estrutura da
narrativa; quer dizer, a partir de pistas falsas, a história é conduzida
visando a um final que não acontece, substituído por outro, totalmente
inesperado (vejam Menino Precoce e A Charneca, por exemplo).
Era um mestre das comparações enfáticas:
"Mais inchada do que cabeça de botafoguense"
"Mais assanhado do que bode velho no cercado das cabritas"
"Mais suado do que o marcador de Pelé"
"Mais duro do que nádega de estátua"
"Mais feia do que mudança de pobre"
"Mais murcho do que boca de velha"
"Mais assanhado do que bode velho no cercado das cabritas"
"Mais suado do que o marcador de Pelé"
"Mais duro do que nádega de estátua"
"Mais feia do que mudança de pobre"
"Mais murcho do que boca de velha"
Traçou, em 12 palavras, o retrato de uma época , os
tais anos dourados nada permissivos, quando o preconceito prevalecia,
principalmente em matéria de sexo:
"Se peito de moça fosse buzina, ninguém
dormia nos arredores daquela praça". Antes da liberação sexual, as
praças e outros cantinhos escuros eram, então, um buzinaço.
Criador de Tia Zulmira, Rosamundo e Primo
Altamirando, foi com seu Festival de Besteira que Assola o País -
FEBEAPÁ, lançado em plena vigência da Redentora, apelido do golpe
militar de 1964, que ele alcançou seu grande sucesso. Stanislaw
afirmava ser difícil precisar o dia em que as besteiras começaram a assolar o
Brasil, mas disse ter notado um alastramento desse festival depois que uma
inspetora de ensino no interior de São Paulo, portanto uma senhora de nível
intelectual mais elevado pouquinha coisa, ao saber que o filho tirara zero numa
prova de matemática, embora sabendo tratar-se de um debilóide, não vacilou em
apontar às autoridades o professor da criança como perigoso agente comunista.
Outras besteiras colhidas pelo autor:
"No mesmo dia em que o governo resolvia intervir em todos os sindicatos, resolvia mandar uma delegação à 16a. Sessão do Conselho de Administração da OIT, em Genebra. Ao Brasil caberia exatamente fazer parte da Comissão de Liberdade Sindical. Na mesma ocasião, um time da Alemanha Oriental vinha disputar alguns jogos aqui e então o Itamarati distribuiu uma nota avisando que eles só jogariam se a partida não tivesse cunho político. Em Mariana, MG, um delegado de polícia proibia casais de se sentarem juntos na única praça namorável da cidade, baixando portaria dizendo que moça só podia ir ao cinema com atestado dos pais. Em Belo Horizonte, um outro delegado distribuía espiões pelas arquibancadas dos estádios. Dali em diante quem dissesse mais de três palavrões ia preso."
"No mesmo dia em que o governo resolvia intervir em todos os sindicatos, resolvia mandar uma delegação à 16a. Sessão do Conselho de Administração da OIT, em Genebra. Ao Brasil caberia exatamente fazer parte da Comissão de Liberdade Sindical. Na mesma ocasião, um time da Alemanha Oriental vinha disputar alguns jogos aqui e então o Itamarati distribuiu uma nota avisando que eles só jogariam se a partida não tivesse cunho político. Em Mariana, MG, um delegado de polícia proibia casais de se sentarem juntos na única praça namorável da cidade, baixando portaria dizendo que moça só podia ir ao cinema com atestado dos pais. Em Belo Horizonte, um outro delegado distribuía espiões pelas arquibancadas dos estádios. Dali em diante quem dissesse mais de três palavrões ia preso."
Na mesma época (1954) em que o jornalista Jacinto
de Thormes publicou na revista Manchete a lista das "Mulheres Mais
Bem Vestidas do Ano", Stanislaw, que escrevia na mesma revista
sobre teatro-rebolado, não quis ficar por baixo e inventou a lista das
"Mulheres Mais Bem Despidas do Ano". Com a grita das mães das
vedetes, passou a usar uma expressão ouvida de seu pai — "Olha só que moça
mais certa" — e estavam, assim, criadas as "certinhas" do Lalau.
De 1954 a 1968 foram 142 as selecionadas. Dentre outras, podemos citar Aizita
Nascimento, Betty Faria, Brigitte Blair, Carmen Verônica, Eloina, Íris Bruzzi,
Mara Rúbia, Miriam Pérsia, Norma Bengell, Rose Rondelli, Sônia Mamede e
Virgínia Lane.
Ao contrário do que parecia ser -- um cara folgado,
brincalhão, gozador e pouco chegado ao labor, Sérgio Porto, por suas
inúmeras atribuições, era um lutador. Nos últimos anos de vida tinha uma
jornada nunca inferior a 15 horas de trabalho por dia."Só estou
levantando o olho da máquina de escrever pra botar colírio. Hoje
fui gravar na televisão e antes foi aquela batalha contra as teclas. Estou
trabalhando demais, outra vez. Só para esta semana: seis Stanislaws, um Fatos
& Fotos, um final apoteótico para o novo programa do Chico Anísio, roteiro
e script para aquela bosta chamada Espetáculos Tonelux, depois quadros
humorísticos para a TV Rio, Miss Campeonato, Da Boca pra Fora, o programa de
rádio Atrações A-9, além da revisão do livro O Homem ao Lado que será reeditado
no próximo mês e da gravação do programa Qual é o assunto?" Para
alguém que teve seu primeiro infarto ao 36 anos, era demais.
"Tunica, eu tô apagando". Essas
foram as últimas palavras ditas pelo autor ao sofrer seu derradeiro infarto, no
dia 29 de setembro de 1968.
Nenhum comentário:
Postar um comentário