quinta-feira, 30 de abril de 2015

POESIA – ROBERTO PIVA

2 POEMAS DE ROBERTO PIVA

PARANOIA EM ASTRAKAN

Eu vi uma linda cidade cujo nome esqueci
onde anjos surdos percorrem as madrugadas tingindo seus olhos com
lágrimas invulneráveis
onde crianças católicas oferecem limões para pequenos paquidermes
que saem escondidos das tocas
onde adolescentes maravilhosos fecham seus cérebros para os telhados
estéreis e incendeiam internatos
onde manifestos niilistas distribuindo pensamentos furiosos puxam
a descarga sobre o mundo
onde um anjo de fogo ilumina os cemitérios em festa e a noite caminha
no seu hálito
onde o sono de verão me tomou por louco e decapitei o Outono de sua
última janela
onde o nosso desprezo fez nascer uma lua inesperada no horizonte
branco
onde um espaço de mãos vermelhas ilumina aquela fotografia de peixe
escurecendo a página
onde borboletas de zinco devoram as góticas hemorróidas das
beatas
onde os mortos se fixam na noite e uivam por um punhado de fracas
penas
onde a cabeça é uma bola digerindo os aquários desordenados da
imaginação




A PIEDADE

Eu urrava nos poliedros da Justiça meu momento
abatido na extrema paliçada
os professores falavam da vontade de dominar e da
luta pela vida
as senhoras católicas são piedosas
os comunistas são piedosos
os comerciantes são piedosos
só eu não sou piedoso
se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria
aos sábados à noite
eu seria um bom filho meus colegas me chamariam
cu-de-ferro e me fariam perguntas: por que navio
bóia? por que prego afunda?
eu deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as
estátuas de fortes dentaduras
iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos
pederastas ou barbudos
eu me universalizaria no senso comum e eles diriam
que tenho todas as virtudes
eu não sou piedoso
eu nunca poderei ser piedoso
meus olhos retinem e tingem-se de verde
Os arranha-céus de carniça se decompõem nos
pavimentos
os adolescentes nas escolas bufam como cadelas
asfixiadas
arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através
dos meus sonhos.

(Poemas extraídos do livro Paranoia, Editora Massao Ono, 1963)


Paulistano nascido em 1937, ROBERTO PIVA teve seus primeiros poemas publicados em 1961 na Antologia dos Novíssimos, organizada por Massao Ono. Dois anos mais tarde, saía seu primeiro livro, Paranoia. Em tudo oposto ao que vigorava na poesia daquele período – em especial ao movimento concreto –, Paranoia revelava influências do surrealismo e da geração beat, o que causou estranhamento junto a críticos mais conservadores. Os anos, porém, se encarregaram de fazer da obra um dos marcos da poesia brasileira do século 20.
Publicou ainda Piazzas (1964), Abra os Olhos e Diga Ah! (1975), Coxas (1979), 20 Poemas com Brócoli (1981), Quizumba (1983), Antologia Poética (1995) e Ciclones (1997). Sua obra completa foi reeditada em três volumes e publicada pela editora Globo entre 2005 e 2008. Faleceu no dia 3 de julho, aos 72 anos, em São Paulo, onde sempre morou.

               http://leoleituraescrita.blogspot.com.br/


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