VIOLÊNCIA E INSENSATEZ
O MUNDO COLHE A TEMPESTADE
QUE ESTÁ A SEMEAR HÁ MUITO TEMPO
Por MINO
CARTA, da CartaCapital
Até
o mundo mineral está informado: dentro em breve, 1% da população mundial será
dona de 99% da riqueza global. O fato não causa o pasmo da própria turma dos
privilegiados, tampouco de uma congregação de ilustres economistas. O argumento
que estes brandem soletra a inevitabilidade do processo, determinado, digamos
assim, pelo estilo (modo, regra) de vida do planeta. E qual seria? Porventura a
lei da selva?
Tempos atrás, dizem os tais economistas, a
existência seguia um curso linear. Pagava-se por tarefa, por obra feita, por
lance executado, de maneira constante e uniforme, de sorte que o tempo
determinava o resultado do esforço despendido. Nos dias de hoje, um único
gesto, uma solitária ação, a decisão isolada de um ser afortunado, pode
torná-lo bilionário da noite para o dia.
E vamos de valsa, a sustentar a teoria. A
fortuna, a bem da verdade factual, sempre influiu para enriquecer este ou
aquele, sem contar a trapaça, o assalto, o roubo, a exploração do homem pelo
homem. Como aconteceu, por exemplo, com os antológicos robber barons dos
EUA no final do século XIX. No entanto, quem justifica atualmente a caminhada
no rumo da desigualdade absoluta não passa de sabujo a serviço do
neoliberalismo. Tornado estilo, modo, regra de vida. Sob medida para garantir a
felicidade de uma centena de empresas multinacionais, a mandarem mais que os
governos nacionais, bem como dos banqueiros e dos especuladores.
Antes ainda que políticas, econômicas e
sociais, estão em jogo questões morais. E intelectuais, relacionadas com a
razão. Por que o mundo haveria de se conformar com uma situação que favorece
pouquíssimos em detrimento da avassaladora maioria? Alguns tímidos sinais de
resistência afloram aqui e acolá. Há de tirar o sono, contudo, de quantos ainda
se norteiam tanto por valores e princípios quanto pela lógica velha de guerra,
toda uma avançada sintomatologia do emburrecimento global.
Vamos então a Copenhague, gélida embora aprazível
capital do Norte, na rota do polo. Pois até ali um muçulmano enraivecido atenta
contra aqueles que enxerga como inimigos. E lá vem a mídia a denunciar mais um
atentado à liberdade de expressão. E não seria inclusive de culto, a se
considerar que o atentador também agiu contra uma sinagoga?
Ninguém se pergunta por que um par de franceses de
sangue árabe invade a redação do Charlie Hebdo, ou um apenas ataca em
Copenhague. Ninguém convoca seus botões para tentar compreender as razões deste
insólito e ferocíssimo conflito, a começar pela fragilidade da Europa, já
assoberbada por imponentes problemas, e pelo desespero das periferias. E no
caldeirão monstruoso, ferve, também e obviamente, a desigualdade cada vez mais
desenfreada.
Neste momento da esperteza de um punhado de
indivíduos e da cretinização coletiva, excelente metáfora da situação é a
chamada arte contemporânea. Na ausência de poetas e com o enterro da pintura. A
quem aproveita se não aos vilões da especulação? Se ditos artistas como os
Hirst e os Koons valem milhões de dólares, o enredo farsesco favorece quem os
negocia, e a quem transforma sua produção ridícula, em um tempo incapaz de
expressar a extraordinária ironia de Marcel Duchamp, em moeda alternativa da
especulação.
O mundo digere a empulhação, sem
discernir realidade da fantasia imposta pela forma dos mais apurados e
capilares instrumentos tecnológicos. Se os empulhadores acima citados valem
milhões, quanto vale a Capela Sistina? Quem se habilita a estabelecer
parâmetros? E por falar em Michelangelo, que se daria se algum cartunista, ao
majestoso rosto barbudo do Deus cristão, a pairar soberano na abóbada da
capela, substituísse as néscias feições de Bush júnior, ou de outro Bush, o
futuro e enésimo? A liberdade de expressão é invocada, sem perceber que ela tem
seus limites.
Quanto
a esse conflito sem fronteiras que abala o planeta, de inaudita violência e
insensatez abissal, denuncia uma lógica na falta de lógica: é a manifestação
inexorável de um mundo violento e insensato, a favorecer os ricos e a
espezinhar os demais.
MINO CARTA é diretor de redação da CartaCapital.
Fundou as revistas Quatro Rodas,
Veja e
CartaCapital
e criou o Jornal da Tarde.
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