Juan Gelman (1930 - 2014) aos 83 anos |
UM
POEMA DE JUAN GELMAN
VERDADES
cada
vez que embaralho recordações dou com essa mulher/
em
suas orelhas cresciam flores para não ouvir os ruídos da dor/
de
perfil parecia o oceano atlântico às 6 da tarde/
do
outro lado era minha tia conversando com seu outono/
de
seus olhos belíssimos baixava às vezes um cavalo
que
recitava comédias/ a comédia do abandono (colocava quatro violetas na cauda
para isso)//
a
comédia do encontro (um coelhinho lhe saía do sul)/
a
comédia do espírito chuvoso embora pianístico/ porém
o
mais formidável era vê-la na comédia do amor/
seu
coração suava como um estivador de porto novo carregando e descarregando um
barco russo/
ao
mesmo tempo seus olhos ficavam brancos feito um esquimó/
sua
voz ia subindo e descendo as escadarias do castelo de northumberland/bêbada
como
papai e outros exemplares de minha delicada família/
não
sei o que faria papai ucraniano daquele jeito na inglaterra/
odiava
londres que zumbia à sua volta e não o deixava dormir/
tinha
opiniões sobre a rainha britânica/
estava
convencido que a coroa inglesa era um aro de sangue com um diamante azul/
acreditava
firmemente que a rainha da grã-bretanha tinha a bunda de pedra/
de
uma nádega saía robin hood disfarçado de rainha/
e
da outra saía robin hood disfarçado de robin hood/
meu
pai foi reprovado frequentemente em história por essas crenças/
que
herdou de uma avó entendida em robin hood/
a
avó de papai era mais bela que todas as rainhas do mundo/
fazia
os bosques tremer com um olhar azul de seus olhos castanhos/
de
seu olho direito crescia uma estepe onde pastava o cavalinho de pushkin/
autor
como se sabe de versos de pushkin/
e
quando pushkin perdeu (e ainda voa de vez em quando sobre o céu sul-americano)
/o cavalinho
resmungou
no olho da avó/
qual
poeta ia levar agora às margens do ser?/disse/
para
quem comer olho agora?/
“vou
começar a voar sobre o céu sul-americano” dizia o cavalinho/
de
maneira que a avó o passou ao outro olho tornando-o cisne/
agora
navega pelo lago que a avó de papai fez chorando
quando
soube da morte de pushkin/
de
modo que não sei o que papai faz em northumberland/
estará
fazendo o mesmo de sempre/
finge
que está a mesa/
mostra
a cara/ come/ bebe/ me dá broncas como um pai/
mas
ele não está aqui/ deve estar falando com a avó/
está
fechando os olhos do poeta russo que chamava pushkin/
está
na casa de madeira de moscou de onde irá fugir porque este é o ano de 1905/
e
essa revolução fracassou/ e fracassou a pele de papai/ que havia posto
a
pele nessa revolução e salvou a pele/
essa
revolução envolvia papai com pássaros mudos/
com
sua morte entrevista e sempre negada/
com
seu peito aberto às garras da fuzilação/
com
os tiros que sempre matavam outras partes e não o deixavam morrer como se deve/
e
ausência de tiros que não o deixavam viver como se deve/
a
única coisa que ele tinha para se defender era uma avó sutil/
papai
acordava às 5 da manhã/
ouvia
os pássaros que a derrota cegou/
dava
a mão a cada companheiro morto ou vivo/
apalpava
o estado de seus sonhos/ revisava sua umidade/
subia
bêbado as escadas/
em
representação do amor que lhe sobrou/ esperou
e
calou em pleno almoço/ mais duro
que
o meio-dia de fogo do sul/
o
meio-dia tinha anjos que sentavam-se em meus olhos/
e
fechavam meus olhos e eu via essa mulher/
essa
mulher misturava a geografia tanto/
havia
estudado numa escola pública/
de
modo que em vez de suspirar/ movia
a
cama cantando a marcha de san lorenzo/
“febo
assoma” cantava com uma espada na voz/ enxugando de si a comédia de ontem/
“já
seus raios” cantava tirando a mesa/ pondo os pratos na pia da manhã/
“e
a voz do grande chefe” cantava na cozinha/ recolhendo
migalhinhas
da conversa amorosa caída na toalha/ ou
apagando
de um só golpe a noite/ as consequências da noite/
com
sua ternura infantil/ mais sonsa que um banquinho/
quando
falava de política era linda como marilyn monroe/
em
sua boca a revolução latino-americana parecia um quadro de rousseau/
sempre
havia uma selva/ um tigre ou uma tigresa/ uma lua rosada
(não
de rosados dedos)/ mistérios vegetais e animais/ e um par de pernas azuis que
voavam como ela
quando
a seu sorriso perfeito vinham cãibras velhas como sua menina quer dizer/
de
quando era pequenina e olhava as paredes do mundo/
e
por seu olhar passava um burrinho sob o sol/
e
ela desembarcava às 6 da tarde com um mundaréu de outonos/
e
assim começava a doçura/
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