Retrato do poeta quando jovem diretor de arte |
LETTERA 22
(UM)
Berenice
passou por aqui
levou
o livro do Machado
disse
que é só um empréstimo.
Ela
sempre me trata meio aos trancos
isso
é bem estranho
deve
ser um incômodo
uma
desarrumação interior
alguma
coisa assim
bem
dela.
Amanhã
faço 16 anos
meus
pais não se falam
faz
10
e
eu aqui
feito
besta
espantando
a fumaça
pelo
vão da janela
olhando
o cachorro sentado no quintal
e
o gato dormindo.
Berenice
disse que eu devia lavar os cabelos
e
que eles estão horríveis
ela
sempre diz coisas assim
parece
que ela me ama
e
me odeia
ela
mal fez 14
é
uma peste
sonha
com um país só de índios
gente
pescando no rio
na
base do arco e flecha
não
sei fazer isso
eu
disse
então
ela
me chamou de idiota
virou
as costas e sumiu.
Silvia
já
é bem diferente
ela
faz ballet
e
tem uma voz
meio
rouca
que
arrepia minha nuca
quando
conversamos
jogados
na escada
na
entrada da casa dela
as
coisas são desse jeito entre nós
um
pouco largadas
ela
ri muito das besteiras que eu falo
e
eu fico bem quieto
quando
ela fala.
Ela
namora um cara que mora no Rio
eu
namoro
uma
outra menina que namora um outro cara
que
também mora no Rio.
A
gente se ama
muito
a
Silvia e eu.
Têm
coisas na vida
que
eu nunquinha
vou
ser capaz
de
entender
(DOIS)
Eu
sempre confundo essa coisa
de
outono inverno
de
primavera verão
nunca
sei quando é uma coisa
quando
é outra.
Ontem
de noite
por
exemplo
tava
muito frio
em
pleno abril.
Fomos
lá pro fundo da casa do Chicão
no
meio do barranco.
Aquilo
tudo de sempre
fogueira
vinho
vagabundo
e
os cigarros.
O
Chicão no violão e na voz.
Meu
Deus
aquilo
era o céu.
Aí
eu te pergunto:
quem
chega?
O
Hiro, a Taekinho, a Mirna
a
Lucy e a Gê.
Meu
Deus
aquilo
era o céu
com
frio e tudo.
Então
a Lucy tocou e cantou uma música
do
Georges Moustaki.
Só
não chorei porque as meninas
iam
rir de mim, eu acho.
Depois
bem
mais tarde
eu
não conseguia distinguir o que era estrela
e
o que era fagulha fugindo
da
fogueira.
O
Hiro me disse
vem
cara
que
eu te levo pra casa.
(TRÊS)
o fumo
do meu pai
só tem na tabacaria
do largo dos Pinheiros
ele passa em frente
e não para
ele chega em casa
e não pede
ele manda
pega a bicicleta
traz dois maços
douradinho extra
é o nome da coisa
que fede
eu quase me mordo
são dez quarteirões até lá
ligeiro ligeiro
largo minha fantasia
no mezzanino da garagem
onde eu sou zorro
no cavalo de pau
onde eu sou el cid
cavalgando morto
na frente da cavalaria
minha batalha é essa
de onde saio
todas as tardes
com a certeza
que sou o único
que sobreviveu
o fumo
do meu pai
só tem na tabacaria
do largo dos Pinheiros
ele passa em frente
e não para
ele chega em casa
e não pede
ele manda
pega a bicicleta
traz dois maços
douradinho extra
é o nome da coisa
que fede
eu quase me mordo
são dez quarteirões até lá
ligeiro ligeiro
largo minha fantasia
no mezzanino da garagem
onde eu sou zorro
no cavalo de pau
onde eu sou el cid
cavalgando morto
na frente da cavalaria
minha batalha é essa
de onde saio
todas as tardes
com a certeza
que sou o único
que sobreviveu
(QUATRO)
eu
ficava só olhando pra trás
o
povo todo na frente
feito
fila indiana
o
Marinho tinha desaparecido
lá
pra trás
aí
eu voltei
ele
tava caído no meio da relva
com
o vidrinho de lança-perfume
do
lado
eu
falei levanta, meu
a
gente vai se perder
ele
falou muito devagar
tô
olhando pro céu
eu
falei
não
tem céu nenhum
tamo
no meio da mata fechada
ele
disse
o
céu tá dentro da minha cabeça
ele
ficou de pé e seguimos
só
o velho Baeder mesmo
pra
juntar toda aquela molecada
e
trazer pro rancho
no
meio do vale da Ribeira
na
beirinha do rio Assungui
viemos
em três carros
o
jipe da Lucy
o
fusca do Hiro
a
perua do velho Baeder
que
ficaram no meio do barro
lá
encostados na estrada
acho
que éramos uns treze
ou
quatorze
quando
chegamos
o
Marinho foi desmaiar na rede
todo
mundo pelado tomando banho de rio
menos
eu e o velho Baeder
descascando
alho cebola batata cenoura
acendendo
o fogão
lenha
não faltava
eu
sempre dividido
não
sabia se ia ou voltava
como
na trilha
não
sabia se me jogava no rio
junto
da meninada
ou
se ouvia as estórias do velho
cada
coisa que ele dizia
do
mundo
puxa
vida
eu
nunca vou conseguir
esquecer
daquele homem
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