Emir Nogueira |
COMO MEU PAI INFLUENCIOU
O JORNALISTA QUE SOU
Não
venci a dor da falta de meu pai.
Simplesmente
me acostumei a viver com ela.
Por
PAULO NOGUEIRA, do Diário do Centro do Mundo
Fiz
uma conta estes dias já meio frios de final de verão em Londres, em que as
temperaturas ficam ao redor dos 15 graus e o vento frio começa a exigir gorros
e capotes, sobretudo à noite. Dia 11 fez 27 anos que meu pai morreu. Pela
primeira vez em minha vida, é mais tempo sem ele que com ele. Tenho 53: 27 a
26, portanto.
Faz
tempo que não sonho com ele, e é de certa forma bom. Sempre que meu pai aparece
em meus sonhos, ele está bem, mas alguma coisa me deixa aflito. Sei que ele vai
morrer, e não há o que eu possa fazer. Tentei segurá-lo algumas vezes sonhando
para que ele não escapasse como naquela madrugada de 11 de setembro de 1982 no
Sírio Libanês em que Mari, minha irmã, cantou para ele as músicas que o
encantavam, ecos de Cravinhos e da São Paulo para onde veio quase menino, tocado
pela mãe, costureira, minha avó Alice, uma visionária interiorana que não
pudera fazer mais que o primário, uma mulher firme o bastante para fazer papai
subir no ônibus e voltar para São Paulo quando ele relutava no final das férias
em sua Cravinhos.
Vó
Alice morreu de tristeza pouco tempo depois que um enfarto matou vô Itamar. Era
um tempo de casamentos longos, alguns deles felizes, outros uma tragédia, e de
minha avó carreguei pela vida a impressão de que não suportou seguir adiante
sem o marido ferroviário. Vô Itamar era mais brincalhão que vó Alice, na minha
memória. “Basta?”, ele sempre perguntava depois de colocar uma pequena dose de
suco ou refrigerante no meu copo no almoço ou no jantar.
Foi
meu pai, extremamente desafinado, quem deu a Mari o repertório grandioso que
ela tem, parte do qual cantada ali no quarto de hospital em circunstâncias
extremamente desafiadoras. A voz bonita de Mari, que papai adorava ouvir, não
fraquejou em nenhum momento. Foi uma das maiores demonstrações de firmeza que vi
em minha vida. Depois
tu partiste … Até Velho Realejo Mari cantou. (Este é um artigo que
eu gostaria que fosse lido ao som de Velho Realejo.) Ao morrer, tinha no bolso
um cheque não descontado dado por um amigo que lhe pedira dinheiro emprestado.
Assim era meu pai.
Papai
era jornalista. Trabalhou 33 anos na Folha. Entrou como revisor, como acontecia
antigamente. Fez depois tudo que se pode fazer numa redação de jornal:
reportagens policiais, coberturas no exterior, editoriais, escolher a foto e os
poucos toques de uma manchete, uma espécie de twitter eterno e sagrado dos
jornais. Foi secretário de redação, um cargo que era enorme a despeito do
título, e que hoje equivale ao de diretor de redação. Presumo que o nome
exótico do cargo supremo derivasse do Partido Comunista, que no passado teve
presença intensa nas redações, e em cuja hierarquia rígida reinava, absoluto
como um czar, o Secretário Geral.
Às
vezes, quando eu tinha 19 ou 20 anos, pegava meu pai na redação, lá pelas dez
da noite, quando o jornal fechava. Ficava com o Chevette vermelho para poder
sair com a namorada e depois ia buscá-lo no prédio de pastilhas amarelas da
Barão de Limeira. Lembro claramente o frenesi das máquinas de escrever em
polvorosa na redação momentos antes do fechamento, e contemplo agora, numa mesa
grande, um pequeno grupo de jornalistas, entre eles Claudio Abramo e meu pai,
escolhendo a foto principal e fazendo a manchete do dia seguinte.
Jamais
encontrei adrenalina em tamanha quantidade em minha vida, nem mesmo nas
madrugadas da década de 80 quando, garoto ainda, enfrentava os dramáticos
fechamentos da Veja, em que textos eram continuamente escritos e reescritos até
o último instante sob a supervisão do diretor José Roberto Guzzo e do adjunto
Elio Gaspari, a maior parceria jornalística que vi em minha carreira.
Ambos
se complementavam e, a despeito de imensos, se encaixavam harmoniosamente no
comando da redação. Guzzo, com sua letra redonda de normalista, era capaz de
transformar um texto mediano num épico, o mais brilhante copy que conheci, e
de quem incorporei um lamento que ouvíamos dele nos fechamentos mais duros: “A
quem apelar?” De Elio, uma vez vi admirado escrever uma capa de trás para a
frente, primeiro o final, depois o começo, por razões industriais.
Muitas
vezes reflito, ao olhar para trás, sobre a ironia de minha trajetória. Virei
jornalista por causa de papai e tudo que rodeava seu trabalho. Uma memória cara
a mim é ele chegando a nossa casa simples no Previdência, à noite, cheio de
jornais do dia que trouxera da redação. Eu mergulhava naquele monte de papel
fascinado.
Lia
encantado coisas como o Placar Moral, em que o jornalista carioca Otelo Caçador
ajustava no Jornal dos Sports o resultado das partidas àquilo que deveria ter
sido e que não fora, ou o Personagem da Semana, no Globo de segunda, em que
Nelson Rodrigues celebrava o craque da rodada. Décadas depois, em minha
passagem pela Editora Globo, o nome Personagem da Semana, dado ao texto que
abre a Época de cada semana, foi um modesto e convicto tributo a uma de minhas
leituras prediletas de garoto.
Jornais
eram minha paixão, por causa de meu pai, como eu disse, mas acabei fazendo
carreira em revistas. Fui conversar, aos 23 anos, com Sérgio Pompeu, que fora
diretor da Veja e era então secretário editorial da Abril. Ele me recebeu em
sua sala de executivo no sexto andar da sede da editora na Marginal do Tietê,
em que havia até uma suíte, um ambiente completamente diferente do que eu logo
conheceria no andar de cima, o sétimo, o da redação da Veja.
Só
mais tarde fui saber que aquela sala imponente abrigava uma amargura que
acabaria matando, cedo, Sérgio. “Seu pai teria sido presidente da Folha se
fosse diferente”, me disse Sérgio. Também só mais tarde entenderia o
significado dessas palavras de introdução em nossa conversa. Sérgio encaminhou
cópias de um texto meu a editores da Veja. Uma editoria estava sendo remontada,
e fui convidado a fazer um teste. Acabei ficando, e passei a carreira em
revistas, longe dos jornais que eletrizaram minha infância.
Meu
pai me inspirou pelo exemplo, pelas continuadas demonstrações de firmeza
pessoal e profissional, e se não fui um aluno melhor foi por minha culpa, pelos
limites que não fui capaz de transpor, e não de meu professor. Papai sempre foi
fiel à sua consciência, e pagou o preço por isso, como lembrou em nossa
conversa tão distante Sérgio Pompeu, que fora uma espécie de aluno de meu pai
no início da carreira.
Na
primeira greve dos jornalistas, em 61, papai era aos 34 anos um dos jornalistas
favoritos de Nabantino Ramos, dono da Folha. Nabantino emprestara dinheiro para
meu pai comprar os móveis no casamento. Numa das decisões mais difíceis em sua
vida, ele aderiu à greve. Magoado com a greve, Nabantino decidiu vender o
jornal e rompeu com meu pai. Uma pequena fortuna foi dada, com a venda, a cada
um dos 12 integrantes do Conselho de Redação, exceto papai, pela greve.
Reataram
mais tarde, um dos episódios prediletos de papai, dado o respeito agradecido
que sentia por Nabantino. Em seu Dicionário Enciclopédico de Jornalismo, uma
das melhores obras da parca bibliografia jornalística nacional, Nabantino, um
nome subestimado na história da Folha, como de resto todo o período pré-Frias,
um capitalista visionário e romântico que levou à Barão de Limeira uma cultura
inspirada nas práticas dos melhores jornais do mundo, incluiu, nos
agradecimentos da apresentação, o nome de meu pai, pelo que aprendera com ele,
tantos anos mais jovem.
A
pedido de Nabantino, papai coordenara a composição do manual de redação da
Folha, no final dos anos 50. Era o primeiro manual da Folha e um dos primeiros
do jornalismo brasileiro.
Guardo
muitas imagens de meu pai. Vejo-o na cama de casal da casa de um banheiro só
para a família toda, sob a luz do abajur, cigarro nos dedos amarelados, um
livro policial à frente dos olhos míopes. Vejo-o na praia, o corpo bronzeado
quase que instantaneamente pelo sol, nadando para o lado e depois fazendo
piruetas na areia. Vejo-o no Pacaembu, antes que o placar majestoso fosse
destruído por uma reforma, fanático por um Corinthians que Pelé parecia ter um
prazer perverso e especial em enfrentar, talvez por causa da torcida única em
sua fidelidade barulhenta a um time que não ganhava nada fazia tanto tempo.
Vejo-o nas manhãs de domingo no Ibirapuera, ele, mamãe e os filhos, tomando
sorvete no quiosque amarelo de um italiano mal-humorado.
Vejo-o
na platéia nos jogos que disputei garoto, primeiro futebol de salão, depois de
campo. Vejo-o na redação, com um cigarro no canto da boca, escrevendo textos
com sua prosa machadiana, com a qual fez um dia um dos artigos mais belos que
jamais li, Mãe, em homenagem à minha avó Alice, provavelmente a pessoa que
papai mais amou e admirou. Vejo-o na missa na capelinha de madeira da
Valdomiro Fleury, um católico praticante que um dia brigou com um padre por não
achar que ele teve sensibilidade para falar, diante da mãe enlutada, sobre uma
garota do bairro morta num acidente de moto antes dos 20.
Vejo-o
chegar à noite em casa, quase sempre o maior momento do dia para meus irmãos e
eu. Vejo-o no palco do Tuca em 1979, dizendo a jornalistas loucos para entrar
em greve que era um erro. Vejo-o estoicamente calmo diante dos insultos
recebidos por não defender a greve, e eu a seu lado querendo subir ao palco e
brigar com os detratores, e rio agora ao me lembrar de um obituário em que
outro grande jornalista daqueles dias, Ruy Lopes, escreveu que papai ficou
abalado naquele dia no Tuca; ora, eu sim fiquei, mas ele parecia depois ter
saído de um jogo de futebol. E vejo-o aderir à greve, uma vez mais, e pagar o
preço pela decisão.
E
vejo-o doente, uma cena rara para um homem vigoroso, exuberante, que jamais
deixara de ir ao trabalho por razões de saúde. Uma dor súbita, na altura da
cintura, só aplacada com injeções em farmácias e num pronto-socorro perto de
casa, e depois exames em série que inicialmente nos deram uma tranquilidade que
logo se revelaria enganosa. Em pouco tempo papai estava à morte no hospital, na
madrugada que abre este artigo, o nosso 11 de Setembro particular.
Ainda
encontrou forças para ditar a minha ex-mulher, então namorada, um último artigo
para uma coluna amigável, nada professoral de português, A Língua Nossa de Cada
Dia. Papai era versado em português. Fora professor de literatura. Dava aulas
de pé, sem consultar livro nenhum; tinha os poemas na cabeça e falava das
diversas escolas literárias com a facilidade com que um torcedor fala de seu
time.
Estudara
latim ao ingressar no final década de 40 na Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras da USP, onde conheceu minha mãe, uma jovem de Ribeirão Preto que tivera
que batalhar depois que o pai fazendeiro, meu avô Maneco, se arruinou na crise
do café de 29. Papai entrou em primeiro lugar na faculdade, e eu só fui saber
estes dias, quando meu filho Pedro fez uma pesquisa sobre o avô no dia de sua
morte.
Gostava
de contar a história de um pássaro que se recusou a sair da gaiola numa aula em
que ele estava falando aos alunos sobre a liberdade. Papai abriu a gaiola, mas
o passarinho teimou em ficar preso, e ouvi várias vezes este episódio que me
ensinou alguma coisa sobre os paradoxos da liberdade.
Papai
não gostava de falar de si próprio. Dos outros, sim. Ouvi-o várias vezes se
referir com admiração a Mario Mazzei Guimarães, que ocupou postos importantes
na Folha nos anos 50, e que escrevia uma coluna sob o pseudônimo de Pedro
Leite. Também falava muito de José Reis, o cientista e jornalista que Octavio
Frias pôs no comando da Folha ao comprá-la de Nabantino.
Com
Reis, que escreveu o artigo mais tocante e profundo sobre papai em sua morte, e
com quem ele trabalhou diretamente alguns anos, papai viveu seus dias mais
ensolarados na carreira, é a sensação que tenho. Era menino, e posso estar
enganado, mas meu pai me parecia particularmente feliz naquela época.
Reis
e ele, separados por 20 anos na idade, sendo papai o mais novo, eram parecidos
na visão e nos princípios pessoais e jornalísticos. Reis foi padrinho de minha
irmã caçula, Kika. No obituário de papai, Reis se referiu a uma “criatura
incomum, pessoal e profissionalmente”.
Claudio
Abramo, um dos mais aclamados jornalistas de sua geração, um intelectual
cosmopolita a quem papai transmitiu a importância de ler não só os grandes de
fora mas também Machado de Assis, um editor explosivo e elegante que se
movimentava apoiado numa bengala que lhe dava ares europeus, escreveu que papai
tinha o atributo essencial do grande editor: a capacidade de distinguir o que
vai para a primeira página do que deve ir lá para dentro do jornal ou
simplesmente ser atirado à lata de lixo.
Montaigne
escreveu em seus Ensaios que a estatura de um homem se mede efetivamente na
atitude perante a morte. Sócrates, Catão, Sêneca enfrentaram a morte
serenamente, e deram um exemplo para a humanidade. É uma passagem de Montaigne
à qual volto constantemente, e ao lê-la penso sempre em papai. Na doença que o
devastou e matou com rapidez, câncer no pâncreas, papai foi um bravo. Nunca
ouvi uma única queixa, sequer nos momentos em que não podia beber água, e a
sede era precariamente aplacada por um pano molhado e levado a seus lábios. Ele
nos confortou, a todos que o víamos morrer encolhidos e assustados e
sinistramente impotentes, numa inversão formidável de papéis.
Lembro-me
de ter colocado nele os óculos no caixão. Não conseguia imaginar meu pai sem
óculos. Quid non
imminuit dies? O que o tempo não destrói? Algumas coisas talvez
resistam ao correr
dos longos dias, para lembrar uma expressão de Machado de Assis,
que meu pai leu na juventude com anotações a caneta numa coleção completa de
capa dura e verde, e não são necessariamente boas. A morte de papai, aos 55
anos, um leão dizimado tão rápido pelo câncer, me atirou num estado de
orfandade, de solidão, de melancolia, de revolta infantil que jamais me deixou
por completo.
( 05 de maio de 2014)
O jornalista
PAULO NOGUEIRA
é fundador
e diretor
editorial
do site de
notícias
e análises Diário do
Centro do Mundo. |
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