quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

POESIA - ROBERTO BOLAÑO

TRÊS POEMAS DE ROBERTO BOLAÑO

O BURRO

Às vezes sonho que Mario Santiago
Vem me buscar com sua moto negra.
E deixamos a cidade para trás e à medida
Que as luzes vão desaparecendo
Mario Santiago me diz que se trata
De uma moto roubada, a última moto
Roubada para viajar pelas pobres terras
Do Norte, em direção ao Texas,
Perseguindo um sonho inominável,
Inclassificável, o sonho de nossa juventude,
Quer dizer, o sonho mais valente de todos
Nossos sonhos. E de tal maneira
Como negar-me a montar a veloz moto negra
Do Norte e sair cortando por aqueles caminhos
Que antigamente percorreram os santos do México,
Os poetas mendicantes do México,
Os sanguessugas taciturnos de Tepito
Ou Colonia Guerrero, todos no mesmo caminho,
Onde se confundem e mesclam os tempos:
Verbais e físicos, o ontem e a afasia.

E às vezes sonho que Mario Santiago
Vem me buscar, ou é um poeta sem rosto,
Uma cabeça sem olhos, nem boca, nem nariz,
Apenas pele e desejo, e eu sem perguntar nada
Subo na moto e partimos
Pelos caminhos do Norte, a cabeça e eu,
Estranhos tripulantes embarcados em uma rota
Miserável, caminhos apagados pela poeira e pela chuva,
Terra de moscas e lagartixas, matagais secos
E tempestade de areia, o único teatro concebível
Para nossa poesia.

E às vezes sonho que o caminho
Que nossa moto ou nosso desejo percorre
Não começa em meu sonho senão no sonho
De outros: os inocentes, os bem-aventurados,
Os mansos, os que para nossa infelicidade
Já não estão aqui. E assim, Mario Santiago e eu
Saímos da Cidade do México que é a prolongação
De tantos sonhos, a materialização de tantos
Pesadelos, e percorremos os estados
Sempre para o Norte, sempre pelo caminho
Dos coiotes, e nossa moto então
É da cor da noite. Nossa moto
É um burro negro que viaja sem pressa
Pelas terras da Curiosidade. Um burro negro
Que se desloca pela humanidade e pela geometria
Dessas pobres paisagens desoladas.
E o riso de Mario ou da cabeça
Saúda os fantasmas de nossa juventude,
O sonho inominável e inútil
Da valentia.

E às vezes acredito que vejo uma moto negra
Como um burro negro afastando-se pelos caminhos
De terra de Zacatecas e Coahuila, nos limites
Do sonho, e sem conseguir compreender
Seu sentido, seu significado último,
Compreendo não obstante sua música:
Uma alegre canção de despedida.

E talvez são os gestos de valor os que
Nos dizem adeus, sem ressentimento nem amargura,
Em paz com sua gratuidade absoluta e com nós mesmos.
São os pequenos desafios inúteis ou que
Os anos e o costume consentiram
Que acreditássemos inúteis os que nos saúdam,
Os que nos fazem sinais enigmáticos com as mãos,
No meio da noite, em um dos lados da estrada,
Como nossos filhos queridos e abandonados,
Criados sozinhos nestes desertos calcários,
Como o brilho que um dia nos atravessou
E que havíamos esquecido.

E às vezes sonho que Mario chega
Com sua moto negra no meio do pesadelo
E partimos rumo ao Norte,
Rumo aos povoados fantasmas onde habitam
As lagartixas e as moscas.
E enquanto o sonho me leva
De um continente a outro
Através de um banho de estrelas frias e indolores,
Vejo a moto negra, como um burro de outro planeta,
Percorrer as terras de Coahuila.
Um burro de outro planeta
Que é o desejo indecente de nossa ignorância,
Mas que também é nossa esperança
E nosso valor.

Um valor inominável e inútil, verdadeiro,
Mas redescoberto nas margens
Do sonho mais distante,
Nas alamedas do sonho final,
No caminho confuso e magnético
Dos burros e dos poetas.


OS ANOS

Ainda posso vê-lo, seu rosto marcado a fogo
no horizonte
Um rapaz belo e valente
Um poeta latino-americano
Um perdedor nada preocupado com dinheiro
Um filho da classe média
Um leitor de Rimbaud e de Oquendo de Amat
Um leitor de Cardenal e de Nicanor Parra
Um leitor de Enrique Lihn
Um tipo que se apaixona loucamente
e que depois de dois anos está sozinho
mas pensa que isso não pode ser
que é impossível não acabar voltando
outra vez com ela
Um vagabundo
Um passaporte dobrado e amassado e um sonho
que atravessa postos fronteiriços
afundado na lama de seu próprio pesadelo
Um trabalhador de temporada
Um santo selvagem
Um poeta latino-americano distante dos poetas
latino-americanos
Um tipo que transa e ama e vive aventuras agradáveis
e desagradáveis cada vez mais distantes
do ponto de partida
Um corpo chicoteado pelo vento
Um conto ou uma história que quase todos esqueceram
Um tipo obstinado, provavelmente de sangue indígena,
mestiço e galego
Uma estátua que às vezes sonha em reencontrar
o amor em uma hora inesperada e terrível
Um leitor de poesia
Um estrangeiro na Europa
Um homem que perde o cabelo e os dentes
mas não o valor
Como se o valor valesse alguma coisa
Como se o valor fosse devolver
aqueles distantes dias de México
a juventude perdida e o amor
(Bom, digamos que aceito perder o México e a juventude
mas jamais o amor)
Um tipo com uma estranha predisposição
a sobreviver
Um poeta latino-americano que ao anoitecer
se fecha em seu jargão e sonha
Um sonho maravilhoso
que atravessa países e anos
Um sonho maravilhoso
que atravessa doenças e ausências.


BIBLIOTECA DE POE

No fundo de um estranho estábulo
Livros ou pedaços de carne
Nervos enganchados de um esqueleto
Ou papel impresso
Um vaso ou a porta
Dos pesadelos.


Poemas extraídos de Los perros románticos; Zarautz: Editora Fundación Social y Cultural Kutxa, 1995; Tradução de Eric Dantas; São Paulo, 2009.

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