O EDITORIAL QUE EMIR NOGUEIRA
SE RECUSOU A
ESCREVER
Emir Nogueira,
de colete,
na posse de
presidente do Sindicato dos Jornalistas de SP,
em 1981 |
TRECHO DO LIVRO QUE PAULO NOGUEIRA
ESTÁ ESCREVENDO,
“MINHA TRIBO: O JORNALISMO E OS JORNALISTAS”
Por PAULO NOGUEIRA*, VIA DIÁRIO DO CENTRO DO MUNDO
Nunca entendi direito por que meu pai me contou a
história abaixo. Faz mais de 30 anos, e ainda me pergunto as razões.
Especulo, apenas especulo, que ele estivesse
querendo dizer ao jovem filho sonhador que se iniciava no jornalismo como as
coisas são, na realidade, nas redações das grandes empresas jornalísticas.
Meu pai, Emir Nogueira, era editorialista da Folha,
em meados dos anos 1960, quando irrompeu uma greve de fome entre os presos
políticos de São Paulo.
O chefe da redação era Claudio Abramo.
Um certo dia, sob a tensão da greve de fome dos
presos políticos, o dono do jornal, Octavio Frias de Oliveira, chama meu pai. E
pede que escreva um editorial que dissesse que não havia presos políticos.
Todos eram prisioneiros comuns, segundo Frias.
Fazia pouco tempo que Frias comprara o jornal de
Nabantino Ramos, um intelectual que se desiludira do ramo depois que os
jornalistas entraram em greve em 1961.
Paternalista – Nabantino deu dinheiro para que meus
pais comprassem os móveis da casa assim que se casaram –, ele se sentiu traído
pelos jornalistas da Folha.
Nabantino e Frias, então dono de uma próspera
granja, tinham um amigo comum. Este amigo sugeriu a Frias que comprasse a
Folha. “Dinheiro você já tem com a granja”, disse o amigo. “O jornal vai trazer
status para você.”
Foi assim que Frias se tornou dono da Folha. Ele
mal conhecia o jornal. Como quase toda a elite paulistana, era fascinado pelo
Estado de S. Paulo, então no auge de sua influência não apenas regional – mas,
sobretudo, nacional.
Frias acabou levando para dirigir a Folha
exatamente um egresso do Estadão, Claudio Abramo.
Não foi uma aquisição simples. Claudio era um
personagem controvertido.
Frias submeteu sua intenção ao Conselho de Redação
da Folha, composto por cinco jornalistas, um dos quais meu pai.
Dois votaram a favor e dois contra. Coube a meu pai
o voto decisivo. Meu pai disse sim.
Claudio acabaria liderando, depois, um movimento de
renovação da Folha. E acabaria também se tornando tutor do filho de Frias,
Otavio.
A Folha passou a dar espaço a colunistas
progressistas, algo que levaria a problemas com o regime militar que Frias
sempre apoiara.
O maior atrito se deu em torno de uma crônica de
Lourenço Diaféria na qual ele escreveu que as pessoas mijavam na estátua
do Duque de Caxias, patrono do Exército, ali nas vizinhanças da Folha, no
centro de São Paulo.
Lourenço foi preso, e sua coluna diária saiu em branco
em protesto.
Um general – Hugo Abreu — ligou para Frias e exigiu
duas coisas: o fim daquele protesto sem palavras e a cabeça de Claudio.
O jornal seria fechado caso isso não ocorresse. E
seria mesmo. Não era blefe.
Coragem mesmo, em época de ditadura, é dizer não
para o governo. Frias disse sim. O espaço em branco da coluna interrompida de
Lourenço foi preenchido e Claudio foi tirado do comando da redação.
Substituiu-o um jornalista amigo do regime, Boris
Casoy, que militara no Comando de Caça aos Comunistas. (Indiretamente, Boris
representou uma inovação na Folha: foi o primeiro chefe de redação incapaz de
escrever. Quando Samuel Wainer morreu, em 1980, Boris teve que recorrer a meu
pai para escrever uma homenagem ao grande jornalista morto, então colunista da
página 2 da Folha.)
Amedrontado com a fúria telefônica do general,
Frias tirou também preventivamente seu próprio nome da primeira página do
jornal, na qual aparecia como diretor-responsável.
O
episódio do editorial que Frias pediu a meu pai ocorreu algum tempo antes da
ameaça de fechamento da Folha.
Meu
pai se recusou a escrevê-lo.
Mas
o editorial, no dia seguinte, estava lá. E atirava acusações pesadas contra os
presos em greve de fome.
Abaixo,
um trecho:
“É
sabido que esses criminosos, que o matutino O Estado de S.
Paulo qualifica tendenciosamente de presos políticos, mais não são que
assaltantes de bancos, sequestradores, ladrões, incendiários e assassinos,
agindo, muitas vezes, com maiores requintes de perversidade que os outros,
pobres-diabos, marginais da vida, para os quais o órgão em apreço julga
legítimas todas as promiscuidades”.
Quem
escreveu o editorial, meu pai me contou, foi Claudio Abramo.
Com
certeza não foi um momento fácil para Claudio, integrante de uma dinastia de
esquerda.
“Todos
os dias o Claudio passava por mim, no jornal, e dizia: ‘Emir, já são três dias.
Emir, já são quatro dias. Emir, já são cinco dias. E a Radha tem vários amigos
lá.”
Radha
era a mulher de Claudio, a segunda e definitiva, uma prima sua. O casal por
causa disso deu às duas filhas, Barbara e Berenice, o sobrenome Abramo Abramo.
Com
certeza não foi uma decisão fácil para Claudio escrever o editorial repulsivo.
Dizer
não ao patrão em circunstâncias tão dramáticas é coisa para poucos.
Papai,
modéstia à parte, era um desses poucos.
Como
seria de esperar, ele foi afastado de suas funções de editorialista.
Só
anos depois eu entenderia uma coisa que Sergio Pompeu, que trabalhara com meu
pai na Folha e depois fora diretor da Veja, me disse quando fui procurar oportunidade
na Abril, em 1980, no começo de minha carreira.
“Seu
pai teria sido presidente da Folha se tivesse espinha mais flexível”, me disse
ele.
Mas
não tinha, e esta foi talvez a maior lição de vida e de jornalismo que tive de
meu pai, Emir Macedo Nogueira.
* O jornalista Paulo Nogueira é
fundador e diretor editorial do site de notícias e análises Diário do Centro do
Mundo.